quarta-feira, 8 de abril de 2009


*DO MUNDO VIRTUAL AO ESPIRITUAL*
Por Frei Betto

Ao viajar pelo Oriente, mantive contatos com monges do
Tibete, da Mongólia, do Japão e da China. Eram homens
serenos, comedidos, recolhidos em paz em seus mantos cor de
açafrão.
Outro dia, eu observava o movimento do aeroporto de São
Paulo: a sala de espera cheia de executivos com telefones
celulares, preocupados, ansiosos, geralmente comendo mais do
que deviam. Com certeza, já haviam tomado café da manhã em
casa, mas como a companhia aérea oferecia outro café, todos
comiam vorazmente. Aquilo me fez refletir: 'Qual dos dois
modelos produz felicidade?'
Encontrei Daniela, 10 anos, no elevador, às nove da manhã, e
perguntei: 'Não foi à aula?' Ela respondeu: 'Não, tenho aula
à tarde'. Comemorei: 'Que bom, então de manhã você pode
brincar, dormir até mais tarde'. 'Não', retrucou ela, 'tenho
tanta coisa de manhã...'. 'Que tanta coisa?', perguntei.
'Aulas de inglês, de balé, de pintura, piscina', e começou a
elencar seu programa de garota robotizada.
Fiquei pensando: 'Que pena, a Daniela não disse: 'Tenho aula
de meditação!'
Estamos construindo super-homens e supermulheres totalmente
equipados, mas emocionalmente infantilizados. Por isso as
empresas consideram agora que, mais importante que o QI, é a
IE, a Inteligência Emocional. Não adianta ser um
superexecutivo se não se consegue se relacionar com as
pessoas. Ora, como seria importante os currículos escolares
incluírem aulas de meditação!
Uma progressista cidade do interior de São Paulo tinha, em
1960, seis livrarias e uma academia de ginástica; hoje, tem
sessenta academias de ginástica e três livrarias! Não tenho
nada contra malhar o corpo, mas me preocupo com a
desproporção em relação à malhação do espírito. Acho ótimo,
vamos todos morrer esbeltos: 'Como estava o defunto?'.
'Olha, uma maravilha, não tinha uma celulite!' Mas como fica
a questão da subjetividade? Da espiritualidade? Da
ociosidade amorosa?
Antes, falava-se em realidade: análise da realidade,
inserir-se na realidade, conhecer a realidade. Hoje, a
palavra é virtualidade. Tudo é virtual. Pode-se fazer sexo
virtual pela internet: não se pega aids, não há envolvimento
emocional, controla-se no mouse. Trancado em seu quarto, em
Brasília, um homem pode ter uma amiga íntima em Tóquio, sem
nenhuma preocupação de conhecer o seu vizi­nho de prédio ou
de quadra! Tudo é virtual, entramos na virtualidade de todos
os valores, não há compromisso com o real! É muito grave
esse processo de abstração da linguagem, de sentimentos:
somos místicos virtuais, religiosos virtuais, cidadãos
virtuais. Enquanto isso, a realidade vai por outro lado,
pois somos também eticamente virtuais.
A cultura começa onde a natureza termina. Cultura é o
refinamento do espírito. Televisão, no Brasil - com raras e
honrosas exceções -, é um problema: a cada semana que passa,
temos a sensação de que ficamos um pouco menos cultos.
A palavra hoje é 'entretenimento'; domingo, então, é o dia
nacional da imbecilização coletiva. Imbecil o apresentador,
imbecil quem vai lá e se apresenta no palco, imbecil quem
perde a tarde diante da tela. Como a publicidade não
consegue vender felicidade, passa a ilusão de que felicidade
é o resultado da soma de prazeres: 'Se tomar este
refrigerante, vestir este tênis, usar esta camisa, comprar
este carro, você chega lá!' O problema é que, em geral, não
se chega! Quem cede desenvolve de tal maneira o desejo, que
acaba precisando de um analista. Ou de remédios. Quem
resiste, aumenta a neurose. Os psicanalistas tentam
descobrir o que fazer com o desejo dos seus pacientes.
Colocá-los onde? Eu, que não sou da área, posso me dar o
direito de apresentar uma sugestão. Acho que só há uma
saída: virar o desejo para dentro. Porque, para fora, ele
não tem aonde ir! O grande desafio é virar o desejo para
dentro, gostar de si mesmo, começar a ver o quanto é bom ser
livre de todo esse condicionamento globalizante, neoliberal,
consumista.
Assim, pode-se viver melhor. Aliás, para uma boa saúde
mental três requisitos são indispensáveis: *amizades,
auto-estima, ausência de estresse*.
Há uma lógica religiosa no consumismo pós-moderno. Se alguém
vai à Europa e visita uma pequena cidade onde há uma
catedral, deve procurar saber a história daquela cidade - a
catedral é o sinal de que ela tem história. Na Idade Média,
as cidades adquiriam status construindo uma catedral; hoje,
no Brasil, constrói-se um shopping center. É curioso: a
maioria dos shopping centers tem linhas arquitetônicas de
catedrais estilizadas; neles não se pode ir de qualquer
maneira, é preciso vestir roupa de missa de domingos. E ali
dentro sente-se uma sensação paradisíaca: não há mendigos,
crianças de rua, sujeira pelas calçadas...
Entra-se naqueles claustros ao som do gregoriano
pós-moderno, aquela musiquinha de esperar dentista.
Observam-se os vários nichos, todas aquelas capelas com os
veneráveis objetos de consumo, acolitados por belas
sacerdotisas. Quem pode comprar à vista, sente-se no reino
dos céus. Se deve passar cheque pré-datado, pagar a crédito,
entrar no cheque especial, sente-se no purgatório. Mas se
não pode comprar, certamente vai se sentir no inferno...
Felizmente, terminam todos na eucaristia pós-moderna,
irmanados na mesma mesa, com o mesmo suco e o mesmo
hambúrguer do McDonald's.
Costumo advertir os balconistas que me cercam à porta das
lojas: '*Estou apenas fazendo um passeio socrático*.' Diante
de seus olhares espantados, explico: 'Sócrates, filósofo
grego, também gostava de descansar a cabeça percorrendo o
centro comercial de Atenas. Quando vendedores como vocês o
assediavam, ele respondia: *Estou apenas observando quanta
coisa existe de que não preciso para ser feliz*.'

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